sábado, 24 de outubro de 2009

O salva-vidas e suas histórias maravilhosas

A crosta de frio sobre a pele parecia visível. O vento doce da primavera ainda estava gelado por esses pagos. A tentação de subir para um vilarejo tropical amornava meus pensamentos. Mas já era tempo de jacarandás. Ah, os jacarandás... E como em todos os anos, essa lembrança inebriou os ponteiros e fez o tempo gritar. O sol cresceu faminto, o vento se rendeu à brisa e a cidade se transformou em feira. Abram alas, o verdadeiro salva-vidas vai passar. É ele, o redentor mundo do livro. Aquece e deliciosamente liberta. Salve-se quem quiser.

Este texto abre as minhas crônicas no livro SALVA-VIDAS, editado pela Nova Prova, com lançamento na Feira do Livro de Porto Alegre. O livro traz divertidas crônicas de 12 alunos da oficina literária do escritor Fabrício Carpinejar. Os meus escritos eu já adiantei aqui no blog... mas lá na Feira vai ter sessão de autógrafos, colegas talentosos, muitas gargalhadas e gente querida por perto!

O quê: sessão de autógrafos do livro SALVA-VIDAS
Quando: 8 de novembro, domingo, às 16h
Onde: Feira do Livro - Memorial do Rio Grande do Sul, Praça da Alfândega

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Esconderijos, vaidades e pirulitos

- Ei, você vai continuar se escondendo atrás de mim?
- Psiu. Fica quieta. Eles já estão chegando.
- Não mesmo. Não quero um irmão medroso. Sai já daí.
- Por favor. Só mais dessa vez.
- Nada disso. A ecografia já vai começar. Vem logo.
- Não vou. Me deixa quietinho aqui. Eles nem vão notar a minha presença.
- Mas que loucura é essa? Tenho cara de esconderijo da insegurança alheia?
- É só por um tempo. Até eu criar coragem de me mostrar.
- Sem chances. Eu ainda nem uso saias e você já quer se esconder atrás da minha barra? Imagina quando estivermos lá fora.
- Psiu. Para de se mexer.
- Não paro. Eu quero mais é me exibir.
- Sim, pra você é muito fácil agir assim. Eles já estavam lhe esperando, estão felizes, fazendo planos.
- Claro, eu não me escondi na primeira ecografia. Que papelão, hein? Do que você tem medo?
- Puxa, tenta se colocar no meu lugar. Eles não me conhecem. Como vou aparecer assim, de surpresa? E se eu não agradar?
- Não exagera. É só agir naturalmente.
- Mas e se eles não gostarem de mim? Se me acharem feio, desengonçado?
- Ai, ai, ai. Inventa outra desculpa. Somos quase iguais. Gêmeos, lembra?
- Mas eu não tenho essa sua singeleza feminina.
- Deixa de ser inseguro. Eles vão lhe adorar.
- Será?
- Claro.
- Não sei não.
- Pensa assim, lá fora você não vai poder se esconder sempre que conhecer alguém. Melhor se acostumar.
- Mas se eu me mostrar, não vai ter volta. E o que eu faço se der errado? Não, melhor esperar mais um pouco.
- Cansei. Quer saber? Tchan... sorria para a nossa primeira foto juntos!
- Sua maluca, para com isso. Eles estão me vendo. E agora?
- Olha lá a cara deles! Estão comemorando!
- Sério?
- Não param de apontar para o seu pirulito.
- Jura? Deixa eu ver.
- Estou dizendo, você agradou muito.
- Puxa, não é que é mesmo.
- Ei, espera aí. Não acredito, nem estão mais me dando bola.
- Hum, acho que eles estão querendo tirar mais fotos de mim. Chega pra lá um pouquinho.
- Hein?
- É, acho que eles estão gostando. Deixa eu mostrar melhor. Quem sabe de outro ângulo.
- O quê? Criei um monstro? Na verdade, acho que não. A história só se repete. Esconderijos, vaidades e pirulitos. Não necessariamente nessa ordem.

Texto selecionado no 4º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais.

A caneta que se entregou ao verso

Dia de estreia me dá um frisson. É sempre assim. Fico ansiosa, ouriçada. Minha tinta sobe e desce, parece que vai incandescer. Meu verniz fica cintilando, todo se exibindo em polimento. Minha ponta moderna se agiganta, nem lembra da antiga tradição da pena de tinteiro.

Falta pouco. As cortinas do teatro estão se fechando. Depois da estrondosa chuva de aplausos, já posso ouvir o burburinho das pessoas deixando a plateia. Meus escribas anônimos se aproximam. Estão eufóricos, arrebatados pela emoção do espetáculo. Hora de registrar os sentimentos. Hora do meu espetáculo particular.

Já no foyer, me posiciono bem perto da porta de saída. Em cima do livro de presenças, mero coadjuvante, fico toda esguia, oferecida, esperando o primeiro toque.

É de uma mulher. Mais velha. Pelo jeito que me leva, parece ser bem decidida. Tem uma letra toda desenhada, até os erres são cheios de curvas. Letras com serifas. Acho que ela também é artista. E quantas reticências. Quintana adoraria. É, ficou bonito.

Hum, esse é homem. Senti a pegada. Mas que apressado. Se expressa em rabiscos, beira um garrancho. Nem consigo entender o que ele está me fazendo escrever. Acho que não é pra ninguém entender mesmo. Esse não sabe o que dizer, melhor não dizer nada. E não disse. Riscou tudo e foi embora.

Garota descolada cheia de siglas e abreviaturas malucas. Será isso o famigerado internetês? Ah, mas comigo não. Travei a ponta. Pode me balançar, chacoalhar, riscar com força. Não vou macular a língua mãe. Quem sabe um esguicho de tinta no meio da testa não faz a moçoila mudar de ideia? Não deu tempo. Pegou uma caneta emprestada e deixou um “bjuxxx, fui”. Ui.

Mãos macias, muitos anéis. Me acalca com vigor contra o papel. O texto é todo em maiúsculas. As capitulares são imensas, colossais. Alguém quebrou um copo ao seu lado. Não se abalou. Escreve com soberania. Será um rei, uma rainha? Pensando bem, nem sei se é homem ou mulher.

Perfume adocicado. Menino doce, mas acalorado. A mão está suando. Ai, estou quase escorregando! Sua letra puxa toda para a direita. Olha lá, cheio de sonhos a sua espreita. Porque é assim, me disse uma vez um querubim. Letra que puxa pra direita é de quem só pensa no futuro. Letra que puxa pra esquerda, coitado, é de quem está preso no passado. O menino escreveu em versos. E o perfume ficou no papel. Que amado!

Ele parece estar me ouvindo. Me fitou com encanto e me escondeu em seu bolso. Fui raptada, que lindo! Devo gritar por socorro? Ele está fugindo.

Texto selecionado no 4º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais.

Bem longe dos dias beges

Quem disse que velho gosta de acordar com as galinhas deveria engolir uma galinha inteira pra aprender a ficar de bico fechado. E de quebra levar umas boas bicadas da galinha.

Que pesadelo. Acordar cedo e com esse frio. Era só o que me faltava. E outra, de onde tiraram que velho gosta de frio? Eu não gosto de acordar cedo e não gosto de frio. E não gosto de acordar cedo pra passear no frio. Tudo isso no mesmo dia. E no dia do meu aniversário. Que presente de grego. E pra comemorar 76 anos. Quem comemora data quebrada?

Eu que devia estar com a cabeça quebrada pra aceitar um convite desses. Mas se eu não aceito é porque a vó é isso, a dinda é aquilo. Está bem, está bem. Vou levantar e fazer a alegria da meninada. Mas só de pensar em sair dessa cama quentinha já faz minha dentadura tremer de frio dentro do copo. E se a tremedeira se espalha pelo corpo? Vão achar que estou com Parkinson. Ah, não, isso não. Daí a tragédia grega do dia vai virar a novela mexicana do ano.

Eles acham que velho está sempre em vias de ficar doente. Não posso ter a minha artritezinha em paz, que já querem me levar pro médico. Mal tenho uma rinitezinha básica e já querem me entupir de remédio. Não posso comer fios de ovos, que já vem o sermão do colesterol. Se eu tiver algo mais grave, estou ferrada. Não, melhor sair da cama cheia de energia e me fantasiar de idoso pra passear com a família.

Sim, modelito de idoso pra hoje. Porque se eu colocar o meu jeans confortável, minha bolsa atravessada e meu All Star velho de guerra, vão começar com o papo de que estou gagá e falar comigo como se eu fosse criança: “Ai, vó, que roupa é essa? Abra os presentes e escolha uma roupa melhor”.

Bege. Blusa bege, saia bege, xale bege. Já estou vendo a cena. E também a minha cara de pastel de vento com tanta coisa morna na minha frente. Depois dizem que fiquei ranzinza. Mas cadê os CDs, os livros, os ingressos para shows? Eu não desbotei. Continuo a mesma. Envelheci o corpo, não o cérebro.

Tu-tuu-tu-tuu. Maldita soneca do despertador. Não tem jeito, vou ter mesmo que sair da cama. E providenciar um aparato salva-vidas pra me resgatar do bege do dia. Rock’n’roll camuflado no mp3, chocolates escondidos na bolsa e aquela canga floreada pra estender na grama. Isso. De mansinho, dou um jeito de sumir e transgredir o protocolo. E quem sabe até conhecer novas gentes por lá.

Esqueço a preguiça embaixo do cobertor. Vou abrindo as persianas e a rua ainda mansa começa a entrar. O mosaico despretensioso brinda o início de mais um tanto de vida. Meu reflexo no vidro da janela denuncia meu verdadeiro presente de aniversário: minha alma continua viva, colorida, bem longe dos dias beges.

Deixa estar, deixa estar

Dizem que os sonhos vão se apagando da lembrança momentos depois que acordamos. E que é melhor anotar o que parecer importante, antes que tudo se dissipe. É o que dizem. E quem sou eu para duvidar.

Eu me lembro muito bem. Naquela noite, além de cansada, eu estava amortecida por todo aquele mais do mesmo. Muitos planos coloridos no coração, mas apenas umas poucas notas fujonas na carteira.

Já aninhada na cama, roubava da poesia dos Beatles o libertador brilho para a alma. A música macia, quase uma carícia, parecia mandar um sinal… “Let it be, let it be, there will be an answer, let it be”. Antes de ser vencida pelo sono, realizei: haveria uma resposta. E houve. Na verdade, seis. As seis dezenas da Mega-Sena.

Acordei de supetão, no meio da noite. Os números gritavam no meu ouvido, pareciam ecos de um sino celestial. Acho que vinham de alguma igreja de Liverpool. Meio dormindo, meio acordada, tratei de levantar. Ainda aos tropeços, fui para a sala, peguei papel e lápis e registrei a minha dádiva. Eu estava imune ao esquecimento que desacredita os sonhadores – os números estavam anotados e a salvo.

Depois da euforia, exausta, me derramei no sofá. Quando o despertador tocou, levantei toda mole, curtindo a intencional falta de pressa. O meu estado era de graça. Sim, eu lembrava do sonho. Não lembrava dos números, é verdade, mas ainda podia ouvir os sinos. Benditos sejam os sonhos! E todos os que ainda acreditam neles. Era só pegar o papel, ir para lotérica e começar a festejar.

Foi aí que o martírio começou. A salvo, mas onde? Cada centímetro do chão da sala foi vasculhado, cada fresta entre os móveis foi examinada. Procurei em todos os bolsos, potes e gavetas. Nada. O sonho se transformava em pesadelo: eu havia perdido o papel.

Não. Não pensem que foi um delírio, um desvario da minha cabeça. Que tudo não passou de uma inocente quimera. As provas cabais estavam lá: o lápis estava em cima da mesa; o bloco, meio amassado pelo calor da hora, também estava lá, com uma folha rasgada mela metade; os CDs e livros, por conta dos tropeços, estavam todos espalhados pelo chão. Fato. Realmente aconteceu.

Até hoje, todos os dias, aproveito a luminosidade escancarada do sol e volto a procurar o papel desertor pela sala. Até hoje, todas as noites, me envolvo na energia da música e volto a atrair os Fab Four para a sedução do quarto.

6 de outubro

Nasci. Renasci.
E pra brindar ao meu aniversário... nasce o blog também. Eba!
Vamos nos divertir! Essa festa não tem data pra acabar.