domingo, 23 de maio de 2010

Um metro e sessenta e cinco de sol

As sementes chegaram pelo correio. Deslizou do envelope um pacotinho de plástico transparente com microdesenhos que antecipavam o conteúdo. Era um plástico retangular, daqueles que fazem barulho e nascem para serem arrematados com fita colorida enroscada com tesoura fina.

A surpresa estava entreaberta. Em vez da fita, um bilhete ensolarado, ainda com vestígios do papel arrancado com pressa do espiral. “Ideia: coloca uns vasos na janela e planta estes girassóis para alegrar os dias chuvosos”.

O bilhete foi colorir o mural. A ideia, inspirar os quatro cantos. Mas os vasos continuaram na loja – o plástico foi em busca da fita, as sementes partiram com ele.

Ele as distribuía aleatoriamente toda vez que a imaginação dela iluminava um possível paradeiro para a fita. O plástico girava, corria, encaixava-se entre os dedos para não cair. A garota ia, voltava, suas mãos urgentes para descobrir. Caixa de correspondência, jardim, escadas, corredor. Todo o percurso do envelope foi feito, refeito, desfeito. E a cada nova centelha, novas sementes se jogavam determinadas, sem rede de proteção.

Na manhã seguinte, a rua, antes silenciosa, hospedou burburinhos crescentes. Os passantes encantavam-se com os galhos que brotavam do quarto andar. Em compasso lento e contínuo, o verde descia pelas paredes, brincava com a grama e enroscava-se serelepe pelo portão.

Ainda sonolenta, a garota desceu as escadas sem perceber que era seguida. A cada passo, uma nova flor brotava e clareava o corredor. Pela fresta da porta fechada do edifício, a luz densa ensaiava para sair. Os girassóis do jardim acordaram em série, aguardando o primeiro giro. A fita amarela sempre esteve na maçaneta. Ela resolveu abrir.

Em tempo: o título deste conto foi inspirado em Edgard Scandurra, Ira!