quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Os quatro garotos

Nossa, que clarão. Está tudo embaçado. Acho que exageraram na dose do colírio. Meu primeiro dia aqui e não consigo enxergar nada. Me falaram das brumas da cidade, mas o médico não precisava levar tão a sério.

Imaginei um dia extraordinário, uma chegada emocionante, lugares surpreendentes. Tudo ao avesso. Não consigo sequer ler o endereço do albergue. E agora, vou pra lá ou pra cá? Opa! Aaaaaaaai!

Que trombada. Fomos caindo em sincronia, como peças de um dominó. Parecia cena de filme, foto pra disco. Eu e os quatro garotos estatelados no meio da faixa de segurança.

Esqueci da confusão do meu dia, da aeromoça derrubando limonada no meu olho, do oftalmologista desvairado agigantando minhas pupilas. Só conseguia fazer parte daquela explosão de gargalhadas descompassadas que neutralizavam qualquer tentativa de explicações. Voltei do transe quando um deles conseguiu me levantar enquanto tentava colocar a mochila nas minhas costas.

- Ei, de que história você saiu, garota?
- Desculpem! Dilatei as pupilas, nem sei por onde ando.
- Desculpar? Foi incrível! Vem, a gente te ajuda a atravessar a faixa.

E marchamos em fila. Atravessando ruas, quadras, bairros inteiros. Ora sérios, ora às gargalhadas. Falávamos aos borbotões. Os assuntos surgiam em escala avassaladora. Desatinos pueris, mentiras aceitáveis, alegrias desmedidas.

“Todos os assuntos são permitidos entre íntimos desconhecidos”, murmurou o primeiro da fila. Ele era quase tão suave quanto visceral. Sua gaita delicadamente escrachada nos guiava e dava o tom daquele louco e irreversível passeio.

O segundo era o mais divertido. Tinha um humor peculiar, agridoce. Para os desavisados, até passaria por despretensioso.

O terceiro era romântico, irreverentemente solidário. Dizia enxergar com os pés. E já que eu não conseguia ver quase nada, abandonou os sapatos para enxergar por nós dois.

O quarto era o mais jovem, mas parecia carregar uma tradição milenar. Introspectivo, deixava um tom de mistério no ar. Quando todos pararam abruptamente, foi dele que partiu a profecia: “Temos que levá-la até lá”.

E seguimos por um túnel no meio da cidade. A luz já não me incomodava. Eu estava maravilhada com tudo aquilo. Com tantas coisas para ouvir e falar, não achei importante perguntar se a noite tinha caído ou se não havia iluminação naquele lugar.

Contaram que descobriram aquele túnel por acaso. Gostavam de correr e gritar por aquelas curvas largas e intermináveis. Era completamente abandonado. Nunca viram ninguém entrar ou sair. Mas sempre imaginaram esbarrar em algum andarilho com quem pudessem compartilhar a magia daquele lugar esquecido nos pés da cidade. O momento acontecia. Precisavam comemorar. E eternizar aquele encontro.

As ideias brotavam e eram banidas em poucos segundos. Não podia ser qualquer coisa. Tinha que ser algo perfeito. Que lembrasse o encontro, mas não denunciasse o segredo. Tamanho era o êxtase que apenas o primeiro se deu conta de que chegávamos numa bifurcação. Os outros continuaram caminhando, certos de que eu continuaria em frente. Somente ele, com sua telepatia amplificada, soube que eu seguiria pelo outro lado.

- Leve os meus óculos. São mágicos, vão te mostrar o caminho – sussurrou, tocando o esquivado canto da minha boca.

Um pouco antes de eu sair do túnel, ainda pude ouvir seus gritos e o som da gaita ecoando o pacto de que nosso encontro naquela rua seria eternizado algum dia.

Não sei se os óculos eram mesmo mágicos, se o efeito do colírio estava passando ou se o frisson pelo inesperado toque dos lábios me devolveu a visão. Com a respiração sôfrega, consegui ler o cartaz a alguns metros da saída do túnel. “Show dos Beatles aqui. Imperdível”. Perdi os batimentos cardíacos.

Texto selecionado no 4º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais.