terça-feira, 6 de outubro de 2009

Deixa estar, deixa estar

Dizem que os sonhos vão se apagando da lembrança momentos depois que acordamos. E que é melhor anotar o que parecer importante, antes que tudo se dissipe. É o que dizem. E quem sou eu para duvidar.

Eu me lembro muito bem. Naquela noite, além de cansada, eu estava amortecida por todo aquele mais do mesmo. Muitos planos coloridos no coração, mas apenas umas poucas notas fujonas na carteira.

Já aninhada na cama, roubava da poesia dos Beatles o libertador brilho para a alma. A música macia, quase uma carícia, parecia mandar um sinal… “Let it be, let it be, there will be an answer, let it be”. Antes de ser vencida pelo sono, realizei: haveria uma resposta. E houve. Na verdade, seis. As seis dezenas da Mega-Sena.

Acordei de supetão, no meio da noite. Os números gritavam no meu ouvido, pareciam ecos de um sino celestial. Acho que vinham de alguma igreja de Liverpool. Meio dormindo, meio acordada, tratei de levantar. Ainda aos tropeços, fui para a sala, peguei papel e lápis e registrei a minha dádiva. Eu estava imune ao esquecimento que desacredita os sonhadores – os números estavam anotados e a salvo.

Depois da euforia, exausta, me derramei no sofá. Quando o despertador tocou, levantei toda mole, curtindo a intencional falta de pressa. O meu estado era de graça. Sim, eu lembrava do sonho. Não lembrava dos números, é verdade, mas ainda podia ouvir os sinos. Benditos sejam os sonhos! E todos os que ainda acreditam neles. Era só pegar o papel, ir para lotérica e começar a festejar.

Foi aí que o martírio começou. A salvo, mas onde? Cada centímetro do chão da sala foi vasculhado, cada fresta entre os móveis foi examinada. Procurei em todos os bolsos, potes e gavetas. Nada. O sonho se transformava em pesadelo: eu havia perdido o papel.

Não. Não pensem que foi um delírio, um desvario da minha cabeça. Que tudo não passou de uma inocente quimera. As provas cabais estavam lá: o lápis estava em cima da mesa; o bloco, meio amassado pelo calor da hora, também estava lá, com uma folha rasgada mela metade; os CDs e livros, por conta dos tropeços, estavam todos espalhados pelo chão. Fato. Realmente aconteceu.

Até hoje, todos os dias, aproveito a luminosidade escancarada do sol e volto a procurar o papel desertor pela sala. Até hoje, todas as noites, me envolvo na energia da música e volto a atrair os Fab Four para a sedução do quarto.

3 comentários:

  1. E aí, achou o papel? Põe na vitrola outro clássico da mesma banda, With a Little Help From My Friends! Quem sabe o John volta do além e te mostra as seis dezenas...

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  2. seis crônicas.
    seis de outubro.
    seis números.
    sei não...
    acho que taí a resposta.

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  3. "...eu estava amortecida por todo aquele mais do mesmo..."

    Pronto !...eis a prova de como escreve muito bem !...rs

    muito legal, Marga !...e...let it be !

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