terça-feira, 6 de outubro de 2009

Bem longe dos dias beges

Quem disse que velho gosta de acordar com as galinhas deveria engolir uma galinha inteira pra aprender a ficar de bico fechado. E de quebra levar umas boas bicadas da galinha.

Que pesadelo. Acordar cedo e com esse frio. Era só o que me faltava. E outra, de onde tiraram que velho gosta de frio? Eu não gosto de acordar cedo e não gosto de frio. E não gosto de acordar cedo pra passear no frio. Tudo isso no mesmo dia. E no dia do meu aniversário. Que presente de grego. E pra comemorar 76 anos. Quem comemora data quebrada?

Eu que devia estar com a cabeça quebrada pra aceitar um convite desses. Mas se eu não aceito é porque a vó é isso, a dinda é aquilo. Está bem, está bem. Vou levantar e fazer a alegria da meninada. Mas só de pensar em sair dessa cama quentinha já faz minha dentadura tremer de frio dentro do copo. E se a tremedeira se espalha pelo corpo? Vão achar que estou com Parkinson. Ah, não, isso não. Daí a tragédia grega do dia vai virar a novela mexicana do ano.

Eles acham que velho está sempre em vias de ficar doente. Não posso ter a minha artritezinha em paz, que já querem me levar pro médico. Mal tenho uma rinitezinha básica e já querem me entupir de remédio. Não posso comer fios de ovos, que já vem o sermão do colesterol. Se eu tiver algo mais grave, estou ferrada. Não, melhor sair da cama cheia de energia e me fantasiar de idoso pra passear com a família.

Sim, modelito de idoso pra hoje. Porque se eu colocar o meu jeans confortável, minha bolsa atravessada e meu All Star velho de guerra, vão começar com o papo de que estou gagá e falar comigo como se eu fosse criança: “Ai, vó, que roupa é essa? Abra os presentes e escolha uma roupa melhor”.

Bege. Blusa bege, saia bege, xale bege. Já estou vendo a cena. E também a minha cara de pastel de vento com tanta coisa morna na minha frente. Depois dizem que fiquei ranzinza. Mas cadê os CDs, os livros, os ingressos para shows? Eu não desbotei. Continuo a mesma. Envelheci o corpo, não o cérebro.

Tu-tuu-tu-tuu. Maldita soneca do despertador. Não tem jeito, vou ter mesmo que sair da cama. E providenciar um aparato salva-vidas pra me resgatar do bege do dia. Rock’n’roll camuflado no mp3, chocolates escondidos na bolsa e aquela canga floreada pra estender na grama. Isso. De mansinho, dou um jeito de sumir e transgredir o protocolo. E quem sabe até conhecer novas gentes por lá.

Esqueço a preguiça embaixo do cobertor. Vou abrindo as persianas e a rua ainda mansa começa a entrar. O mosaico despretensioso brinda o início de mais um tanto de vida. Meu reflexo no vidro da janela denuncia meu verdadeiro presente de aniversário: minha alma continua viva, colorida, bem longe dos dias beges.

4 comentários:

  1. Quero chegar aos 76 bem colorida! Ranzinza com o frio, mas feliz por acordar cedo. Lendo o texto consegui, talvez pela primeira vez, me imaginar velhinha com menos utopia, fantasia, sei lá, mais parecida com o que sou e menos com o que se imagina de uma vovozinha.

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  2. Olha que coincidencia: TUTU (palavra que tu usaste para descrever o despertador tocando) eh VOVO aqui no Hawaii, e todo mundo usa direto...Legal neh? Primeira vez que eu li o paragrafo achei que ia comecar com alguem chamando a velhinha de TUTU, uma viagem, ja achei que tu ia colocar um neto havaiano na estoria, heheheheh
    bjs Nanda :)

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  3. Arrasou, Marguinha :) Classifico este teu texto como um hino à vida! Heis a fonte da juventude, aos 8, 18, 38 ou 88. São apenas números, quem precisa deles? Tanta coisa ainda por fazer... "Envelheci o corpo, não o cérebro". Amei! Também eu quero ficar bem longe dos dias beges.
    Sensibilidade e talento com as letrinas. Dá nisso! Viu?!

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  4. 8, 18, 38, 88, ai ai ai...
    mais dois números, beatriz.
    o despertador e os súbitos acordes, let it be.
    ainda adoro uma ideia sem pé nem cabeça.
    sonho todos os dias e, nem é de manhã.
    o presente indica que o futuro não será bege.
    nem pra mim e nem pra ti.

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