terça-feira, 6 de outubro de 2009

A caneta que se entregou ao verso

Dia de estreia me dá um frisson. É sempre assim. Fico ansiosa, ouriçada. Minha tinta sobe e desce, parece que vai incandescer. Meu verniz fica cintilando, todo se exibindo em polimento. Minha ponta moderna se agiganta, nem lembra da antiga tradição da pena de tinteiro.

Falta pouco. As cortinas do teatro estão se fechando. Depois da estrondosa chuva de aplausos, já posso ouvir o burburinho das pessoas deixando a plateia. Meus escribas anônimos se aproximam. Estão eufóricos, arrebatados pela emoção do espetáculo. Hora de registrar os sentimentos. Hora do meu espetáculo particular.

Já no foyer, me posiciono bem perto da porta de saída. Em cima do livro de presenças, mero coadjuvante, fico toda esguia, oferecida, esperando o primeiro toque.

É de uma mulher. Mais velha. Pelo jeito que me leva, parece ser bem decidida. Tem uma letra toda desenhada, até os erres são cheios de curvas. Letras com serifas. Acho que ela também é artista. E quantas reticências. Quintana adoraria. É, ficou bonito.

Hum, esse é homem. Senti a pegada. Mas que apressado. Se expressa em rabiscos, beira um garrancho. Nem consigo entender o que ele está me fazendo escrever. Acho que não é pra ninguém entender mesmo. Esse não sabe o que dizer, melhor não dizer nada. E não disse. Riscou tudo e foi embora.

Garota descolada cheia de siglas e abreviaturas malucas. Será isso o famigerado internetês? Ah, mas comigo não. Travei a ponta. Pode me balançar, chacoalhar, riscar com força. Não vou macular a língua mãe. Quem sabe um esguicho de tinta no meio da testa não faz a moçoila mudar de ideia? Não deu tempo. Pegou uma caneta emprestada e deixou um “bjuxxx, fui”. Ui.

Mãos macias, muitos anéis. Me acalca com vigor contra o papel. O texto é todo em maiúsculas. As capitulares são imensas, colossais. Alguém quebrou um copo ao seu lado. Não se abalou. Escreve com soberania. Será um rei, uma rainha? Pensando bem, nem sei se é homem ou mulher.

Perfume adocicado. Menino doce, mas acalorado. A mão está suando. Ai, estou quase escorregando! Sua letra puxa toda para a direita. Olha lá, cheio de sonhos a sua espreita. Porque é assim, me disse uma vez um querubim. Letra que puxa pra direita é de quem só pensa no futuro. Letra que puxa pra esquerda, coitado, é de quem está preso no passado. O menino escreveu em versos. E o perfume ficou no papel. Que amado!

Ele parece estar me ouvindo. Me fitou com encanto e me escondeu em seu bolso. Fui raptada, que lindo! Devo gritar por socorro? Ele está fugindo.

Texto selecionado no 4º Concurso Literário Guemanisse de Minicontos e Haicais.

9 comentários:

  1. Querida Marga,

    Linda, inteligente, deliciosa crônica.
    Beijão e siga voando alto, pra quem começou batendo as asinhas há pouco já estás voando muito bem.
    Escreva mais belezas, estamos aqui para ler.
    Doris

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  2. Imaginei uma caneta prateada, fosca, pesadinha, tinta preta, chique, sensível, meio metida. A protagonista surtaria se eu continuasse aqui tipo ahns, mgxa, tidólu, vlw, bjs, amuuuuu, fui!!! Hehehe >:) Ainda bem que ela não pode vir aqui e travar o meu teclado. Viva a diversidade!

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  3. marguinha e a antoninha eu adorei essa caneta ela e d+ queria ver ela , beijos toty

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  4. Adorei este texto!
    E mais fofo ainda foi ver o recadinho da Antônia ;)
    Beijos!! Sucesso!
    Dami

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  5. A saber: a Antônia é minha afilhadinha sapeca, levada da breca.
    Tem nove anos e postou sozinha o comentário. :)

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  6. Marga, amo cronicas e sei que isso nao é pra qualquer um. A cronica tem um tempo certo, nao pode ser mais nem menos do que aquilo que deveria ser. E o tema normalmente tao banal se transforma em inusitado atraves da otica de quem escreve. Tens o dom! Privilegio de quem é inteligente, observador e sensivel. Parabens e beijos!! Ana Porto

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  7. Marga, teu texto é demais. É objetivo, coeso, tem ritmo e retrata situações do cotidiano. Bom demais de ler.Segue voando, amiga. Estou aqui para te aplaudir. Super beijo e parabéns!!

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  8. Só quem tem intimidade com "ela" poderia produzir este texto com tamanha sensibilidade e habilidade. Parece que eu tava lá, sentindo tudo junto, até o sufoco do bolso fechado.
    Uma caneta viva! É a tua, com certeza!
    Crônica saborosa e ao mesmo tempo crítica, na medida certa. Com humor requintado transforma as almas em letras, ou será o contrário?!
    Parabéns, minha amiga!
    Grande Beijo :)

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